Antes que chovesse
Arredados das provas há muitos meses, habituados a usufruir dos trilhos sem horários nem postos de controlo, partimos para Fafe ansiosos. Ou melhor, o Paulo aparentava estar tranquilo, eu é que estava ansiosa. Só queria terminar a prova antes que chovesse. Chegamos ao Parque de Campismo da Barragem de Queimadela, recolhemos os dorsais, numa secretaria impecavelmente coordenada e juntamo-nos à nossa equipa que, entretanto, tinha chegado.
Descemos juntos para a partida. A paisagem envolvente era arrebatadora: vegetação exuberante refletida num imenso espelho de água, sossegada, que me encheu de tranquilidade. Partimos e seguimos juntos por aproximadamente 5 Km marcados em paralelos e caminhos de terra batida que rasgavam freguesias envelhecidas. Ruínas de casas que desistiram da vida, portões enferrujados, vergados pelo peso dos anos e das histórias por contar. Antes do Km 3, deparamo-nos com primeira subida e seguimos pelo trilho envolvidos por imensidões de eucaliptos, carvalhos e giestas. Ao Km 5 já os tinha perdido mas cheguei tranquila ao Km 7, altura em que esbarrei com um descida não muito técnica, mas acentuada, em terra batida, daquelas que nos dá vontade de percorrer velozes, sem travão, com a liberdade de crianças. Daí ao até ao abastecimento, no Km 10, foi sempre a subir por escadarias de lajes arredondadas. O abastecimento ficava num Parque Eólico e senti-me na minha aldeia. A mesma envolvência, os mesmos sons das lâminas a cortar o ar, o mesmo frio miudinho. Quando cheguei ao abastecimento já ia sozinha e assim continuei até ao final da prova, senão em último, quase lá. Os últimos usufruem de um privilégio singular: a sensação libertadora de ninguém querer saber. No Trail, em geral, existe uma democracia ímpar, porquanto ali não somos todos iguais. Mas as diferenças não se medem pelo nome de família, pelo extrato social ou pela cor politica. Ali ninguém quer saber se somos médicos, engenheiros ou caixas de supermercado. Não importa onde moramos, se começamos a praticar a modalidade há 5 ou 10 anos ou se os pais já nos levavam para a montanha. Importam as classificações, as equipas, as ambições. Exceto sobre os últimos sobre os quais, não importa nada. Nos últimos lugares ninguém sabe os nossos nomes ou o que nos levou ali. Sobre nós não há qualquer expectativa. Não temos que caber em estereótipos nem seguir planos impostos por ninguém. Podemos ser incrivelmente nós próprios: ninguém está lá a vêr. Foi com esta confiança de quem não tem nada a perder, que arranquei para o abastecimento seguinte. Maravilhada, o meu fôlego foi trucidado na subida dos 13 aos 14 Km. A beleza da imensidão de verde que acolhia o rio, límpido e sereno, não era tão marcante como a dureza daquela subida interminável, atabalhoada, impiedosa que sei lá com que arrojo consegui terminar. Subi até ao ponto mais alto do Concelho: 893 metros, atingidos por volta do Km 16.
Ao
chegar, um senhor, junto a um Jeep perguntou-me se estava bem para continuar. Olhei
para mim de cima a abaixo e questionei-me porque raios aquele homem duvidava que
eu chegaria ao fim. Saí dali esbaforida e segui, tão veloz quando era capaz,
até ao abastecimento que impunha barreira horária aos 22,5 kms. O percurso era delicioso,
com contornos de bosque e cheiro de terra molhada. Queria parar só para ouvir o barulho
da água fresca a correr, pisar as folhas secas em vários tons de castanho,
devagar. Mas não podia. Tinha que atingir o posto e controlo o quanto antes, mais
para provar a mim mesma do que ao senhor do jeep, que era capaz e para não
desiludir o Paulo que, constantemente, enviava mensagens de incentivo. Quando
lá cheguei, o sr. do jeep já lá estava. Cumprimentou-se, genuinamente feliz por
eu ter chegado ali. Comi uma canja soberba e quis ficar mais um pouco, mas parti.
Tinha que chegar aos 32 Km antes que chovesse. Bem poderia ter chovido, não teria
piorado o martírio que foram esses Km. A partir do Km 26, os trilhos voltavam a
erguer-se, vertiginosos até atingir outra vez os 800 metros. Os músculos das
minhas coxas eram uma papa mal acabada, as minhas pernas carregavam o peso do
mundo, arrastava-me como um escravo presos por correntes de ferro, a minha
respiração era análoga à de um moribundo. O vento fustigava-me os ossos,
empurrava-me. A água das correntes translúcidas era gelada de arrancar lágrimas e sentia as pedras que
entraram nas sapatilhas a abrirem buracos nas plantas dos pés. Desejei
profundamente sentar-me e chorar todas as agruras da vida. Não podia. Tinha que
terminar a prova antes que chovesse. Passei os 32 Km a arrastar-me e mal
consegui pronunciar um " Boa tarde" aos voluntários do abastecimento. Renasci a
2 Km da meta quando um funcionário da Lap2go e o Paulo me apanharam e me
acompanharam até ao fim. Nesse momento todas as dores se dissiparam como a terra cravada do corpo a ser despejada no ralo de uma banheira de água quente.
Cheguei à meta francamente feliz, engolida em abraços da equipa do Paulo e do
Joca. Poderia ter tido mais facilidade mas, no Trail, como na vida, a sensação
de triunfo não nos invade quando o percurso é acessível. Mas quando é feroz e
com obstáculos, que conseguimos ultrapassar. Regressamos a casa, antes que
chovesse.
Ana