Da moda do team building, dos eventos web e das ultras.

11-11-2018

A minha mãe sempre me ensinou que a solidariedade começa em casa. E perdoem-me mas não compreendo que utilidade é que andar de karts ou correr dentro de sacos de sarapilheira pode ter para um grupo de colegas que não dialoga, não se organiza, não se apoia. Tenho miopia e astigmatismo mas aos meus olhos, a coesão e integração de uma equipa constrói-se diariamente, no local de trabalho, com uma escuta ativa, cooperação, interação, comunicação e planeamento estratégico. Mas não, as administrações ausentes e as gerências alheadas não querem saber se as suas equipas estão motivadas, se têm recursos e se os colegas se entreajudam. Empresa que é empresa tem que inscrever os seus trabalhadores em eventos corporativos, rally papers, caças ao tesouro, provas de orientação e workshops. Deslumbram-se em eventos começados por web e regressam a transbordar de soluções de coaching e mentoria que não vão aplicar, porque só contratam pessoas em regime de estágios profissionais e as equipas não chegam a aquecer as cadeiras o tempo suficiente para criar laços. A última moda destes eventos de coaching e team building é convidar ultra-maratonistas para workshps motivacionais. O que eu compreendo. Se para completar 3 dígitos em pista é necessário um gigantesco mau feitio e uma tenacidade colossal, eu nem consigo compreender o que são a coragem, a capacidade de sacrifício, a disciplina e a resistência necessárias para atravessar o deserto do Gobi ou completar a Maratona do Polo Norte. A questão é mesmo essa...eu nem compreendo. Posso ficar fascinada, extasiada, mas não motivada. De que me serve saber quais as capacidades necessárias para terminar a Comrades se eu não vou a África do Sul nem para fazer turismo? Ou qual a preparação necessária para terminar a Marathon des Sables se a única areia com que tenho contacto é a da praia? Corri, pela primeira vez, a maratona quando me disseram que se "Se queres correr, corre um Km. Se queres mudar a tua vida, corre uma maratona". Não me esqueço de quem abdicou da sua prova para fazer a minha, de quem ficou ou foi de propósito esperar-me à meta. Marcou-me, mas a minha vida não mudou. Depois corri 120 Km e não me esqueço de quem me deu de comer e beber e de quem aguentou toda a noite acordado para eu não dormir. Marcou-me, mas não me transformou. Doeu, mas suponho que as dores físicas sejam, quase sempre, suportáveis. Não transformam. O que dói mesmo é ter fome. É cuidar de uma mãe demente que não nos reconhece. É ficar sem um filho pequeno que nenhuma força de vontade conseguiu salvar. Isso dói, e motiva. Motiva-me o pai que trava uma luta titanica contra um sistema de ensino podre e acomodado em defesa de um filho com necessidades especiais. Motiva-me o marido fustigado pela desumanidade do local de trabalho, que passa noites em claro e vomita tudo o que come, mas não sucumbe à pressão para sustentar a família. Motiva-me a filha que trabalha, dá banho aos Pais que já não conseguem cuidar de si, leva os filhos ao treino, cuida dos seus equipamentos, gere a casa e encontra tempo para estar a sós com o marido. Motiva-me a D. Judite da padaria que depois de 8 horas ao balcão ainda vai lavar escadas para conseguir sustentar, sozinha, o filho adolescente, e o filho da D. Judite, educado e amável, que não reclama por não ter o I phone 9 e estuda para ser o melhor aluno possível. Estas pessoas (algumas ultramaratonistas) é que eu gostaria de ouvir falar em workshops motivacionais, sobre como vencer as ultramaratonas do dia-a-dia. De que me adianta ganhar uma prova nos Himalaias se abandonar os meus Pais? Sou exemplo para alguém se completar uma prova de Triatlo mas não vir os meus filhos crescer, se enganar os meus clientes, se prejudicar os meus colegas? O team building constrói-se nas adversidades do quotidiano e as maiores ultramaratonas de todas, ganham-se muitas vezes nos nossos locais de trabalho e nas nossas casas. Estas, são as ultras que tranformam! Agora vou correr, que não há ato mais libertador nem tamanha sensação de " posso tudo" do que correr à chuva e chapinar nas poças!

Ana


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