De correr 100 Km e das voltas da vida
Perguntam-me várias vezes o que me motiva a correr
uma prova de 100 Km, às voltas, num circuito fechado. Mas em que pensas durante
tantas horas? Não te cansas do percurso? Não ficas tonta por dar tantas voltas?
Como é que consegues? A resposta é " Não faço ideia". Genuinamente não sei
como consigo, da mesma forma que não sei como aguento tantas voltas que a minha
vida dá. Os 100 Km de Lousada são, na verdade, uma metáfora da minha vida, nos
últimos anos. Talvez por isso, me sinta tão confortável nesta prova...voltar à
estaca zero, tornou-se bastante usual para mim. E os processos de mudança de
vida pessoal, profissional, são bastante semelhantes a uma prova de corrida de
100 Km em circuito fechado. Nos primeiros 20
Km, tal como nas primeiras semanas de um novo projeto, não estou cansada,
sinto-me, em regra, motivada, mas extremamente ansiosa e sem acreditar que vá
conseguir. Nos 20 Km seguintes, já começo a acusar algum cansaço e a sentir
necessidade de parar (como num novo projeto sinto necessidade de passar fins de
semana fora para descansar, sair da rotina) mas está a correr-me tão bem e
estou tão focada no que estou a fazer, no meu ritmo, na minha respiração, nos
meus movimentos, no número de kms que ainda falta correr, no número de voltas
que preciso de completar, que nem paro, nem me queixo. Dos
40 aos 60 Km é a fase em que me sinto
pior: estou cansada, o rendimento não é o
mesmo, perdi o entusiasmo inicial, deparei-me já com
inúmeros obstáculos,
preciso de parar, e paro. Várias
vezes. Mas não consigo recuperar a
energia, o alento, apercebo-me de quantos Kms é que ainda faltam para terminar
a prova. Perco a capacidade de foco e qualquer fé de que vá conseguir acabar.
Arrasto-me. Também a determinado momento das fases de mudança pelas quais tenho
passado, tenho acusado o peso das decisões, questionado as minhas competências,
sofrido ansiedade, perdido alguma falta de capacidade de combate. Mas fora e
dentro da pista, tenho conseguido conquistar confiança suficiente das pessoas
com que me relaciono e, nestes momentos, é a fé que têm em mim que me recupera
do desgaste e me atira de novo à pista. Ao desafio.
Chego ao km 60...só preciso de conseguir correr mais 10. Se chegar aos 70 Km, sei que vou conseguir terminar a prova. Mas preciso de lá chegar. Este é o momento do desapego. Da libertação. Despojada de dores, não sinto o corpo. Toda eu sou sentidos. Vejo o espaço que me envolve, ouço as vozes de quem ficou para me apoiar, mas não as distingo. Estou consciente da presença das pessoas mas não as reconheço. São só vultos. Não corro, deixo-me ir. Usufruo de cada segundo e toda a minha vida é aquele momento. Queria sentir-me sempre assim, como que livre de amarras e juízos de valor, sem ter que tomar decisões e suportar as consequências das minhas escolhas. Só a deixar-me ir. Chego ao Km 70. Neste momento sei que vou conseguir. Não sei como. Mas sei que vou. Em vários momentos da minha vida não soube onde queria chegar. Razão pela qual não cheguei a lugar nenhum. Outras vezes não soube como atingir as minhas metas. Quais os meios. Quais as opções. E deixei-me ficar. Obviamente não podemos prever todas as consequências das nossas opções, antes de decidir. Só podemos saber que qualquer decisão que tomemos, vai ter consequências. Preparei uma estratégia: ia fazer os últimos 30 Km em equipa. Marido, colegas da equipa, amigos que tinham ido de propósito apoiar-me, revezaram-se. Já não conseguia concluir a volta completa a correr. Decidimos, em equipa, que só correria nas retas e descidas e alcançaria o topo das subidas, a caminhar. Decidimos de quantas em quantas voltas abrandaria para comer ou beber. Custou-me muito mais do que supunha. Acreditava estar melhor preparada. A determinada altura já tinha vertigens, já subia melhor do que descia, já não conseguia ingerir uma gota de líquidos. Mas sabia exatamente onde queria chegar. E não estava sozinha. Não suportava o toque mas não queria distância. Ouvia as vozes de quem me acompanhava mas não compreendia. Não sentia o meu peso mas cada passo que dava pesava a minha vida inteira: e todas as voltas que já deu. Todos os fracassos, todas as conquistas, todas as pessoas que deixaram marcas cada vez mais ténues e que quase não consigo recordar. Todos os projetos, todos os sonhos, todas as expectativas, todas as pessoas, que estavam ali na meta, que me ajudaram a chegar ali...cheguei. Consegui. Sempre soube que conseguiria. Sei sempre que vou conseguir, mesmo quando não consigo. E quando não consigo, volto ao inicio.
Ana