O pelotão dos últimos

26-03-2017

Há uns tempos, após uma exposição sobre a sua épica participação na ultramaratona Tor des Geants, em Itália, o Armando Teixeira disse-nos: " Vocês não se acreditam, mas, por vezes, tenho inveja de vocês". De facto, não. Não queríamos acreditar que um líder de pelotão de longas distâncias pudesse ter qualquer inveja de uns corredores/caminheiros de fundo de tabela. No entanto, após algumas experiências como " vassouras" de provas de trail run, cremos já compreender. Para se chegar ao pódio é preciso uma disciplina e um espírito de sacrifício invulgares. Mas para se aguentar uma prova toda em ultimo lugar, sem certeza de passar as barreiras horárias, sem prever aplausos na chegada à meta e sem nunca querer desistir por isso, é preciso uma dignidade e humildade indizíveis. No pelotão dos últimos não há pódios, nem fotógrafos, às vezes já nem há água nos abastecimentos ainda montados. Não há "4.20", nem " 5.30" nem se mede a frequência cardíaca. Não importa se a prova tem muito ou pouco paralelo ou se haveria trilhos mais bonitos, porque no pelotão dos últimos, cada metro do caminho é uma superação, uma conquista e cada km traz a sua beleza, à sua maneira. Porque no ritmo a que vão os últimos do pelotão, há tempo para apreciar tanto a orquestra de cores de um vale florido, como o desgaste de um paralelo carregado de histórias. Há tempo para ouvir os galos, e a passagem da brisa e o " Ruben sai de cima do tractor que te magoas!" Há tempo para cumprimentar as " Ti Marias" e os " Manéis das vendas", o que, cremos, poderá ser o motivo da inveja carinhosa de que o Armando falava. Ontem fomos, novamente, voluntários/varroura. Desta vez, do TC do Compressport Ultra Trail do Marão. Acompanhamos, desde o início a Sara e a Márcia que, na certeza de serem as últimas, nunca pensaram em desistir. Percorremos juntos os primeiros Km de alcatrão, bonitos pelo desafio, pela ruralidade, pelo tagarelar dos pássaros e reclamar das galinhas. Entramos depois em trilhos de terra batida, enxertados em filas de oliveiras e árvores de fruto. A Márcia mais forte nas descidas ( é do nome!) a Sara com mais pernas para as subidas e nós, na retaguarda, lá fomos conquistando Km a Km, os telhados vergados pelo peso de gerações, que deixavam à vista os pontos mais altos da Serra do Marão, carregados de neve. Finalmente o primeiro abastecimento ( pelos 11 Km) e logo 3 caras conhecidas. Dois Pernetas ( o Moreira e o Cardoso) e uma amiga ( a Lurdes), aguentaram ao frio e não arredaram pé do abastecimento enquanto não chegaram os últimos, que fizeram rir e acarinharam, como se fossem os mais importantes participantes da prova. Não pudemos ficar ali tanto tempo quanto gostaríamos porque o tempo para terminar a prova já se fazia curto. Seguimos...pelo paraíso. O curso de água do Rio Ovelha rompeu sorrisos nas nossas caras. A Márcia já carregava dores fortes, mas chegada às margens do rio, logo pousou o sofrimento num açude e percorreu, sem dificuldade, os trilhos frescos que amparam aquelas águas limpas, azul-esverdeadas. Chegados à praia fluvial, o banho, claro, porque os últimos do pelotão não perdem uma oportunidade de mergulhar em águas frescas. Não imaginávamos nós que, por volta do Km 17, iríamos mesmo ter que atravessar um rio, com um caudal significativo, e que, embora sem perigo e sempre agarrados a uma corda lá colocada para o efeito, provocou dores acutilantes a todos nós, que acabamos em gargalhadas ante a generosidade e disponibilidade dos GOBS que ali permaneciam há horas. Um pouco mais à frente, o segundo abastecimento, com quase tudo os que as nossas bravas combativas necessitavam para terminar a prova. Quase, porque já falhavam as pernas, cresciam as dores, adensava-se a respiração e os Kms que faltavam até à meta teimavam em ser vagarosos. Naquele pelotão dos últimos, houve de tudo! Mãos a empurrar nas subidas e amparar nas descidas. Houve ansiedade, desespero, esgar de dor. Houve choro, ranho e gargalhadas. Houve " duas de treta" com habitantes das aldeias, ligaduras cortadas à dentada. Houve " dói-me as mãos, embrulha-as no meu buff, não, espera que tenho um par de luvas a mais e devolves noutra prova". Houve incentivo aos ultras que nos ultrapassaram, alguns já sem fala, outros a retribuir o ânimo. Houve a chegada à meta e o orgulho intransponível para palavras das duas guerreiras que terminaram em último lugar da classificação, mas em primeiro de espírito de sacrifício. Parabéns!

Ana

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