Quatro lições que a minha cadela me poderia ensinar

03-02-2019


Este fim-de-semana despistamo-nos. A menos de 10 Km do alojamento fomos surpreendidos por uma queda de neve que nos atacou, furiosa. Avançamos muito devagar e só faltavam 2 Km para chegarmos ao destino quando, numa curva a descer, nos deparamos com o alcatrão forrado de gelo e não pudemos senão agarrar-nos e esperar que o carro deslizasse, saísse da estrada e descesse pela berma até ficar preso entre pedregulhos. Mal paramos, a primeira pergunta que o meu marido me fez foi se eu me tinha magoado. Não lhe respondi que não tinha nem um arranhão, nem lhe perguntei o mesmo. A primeira pergunta que fiz foi se o seguro cobria aquele estrago. Não sei quando é que me tornei uma máquina de calcular, mas enquanto descíamos desamparados pela berma, não pensei que poderia morrer ali, que me poderia magoar, ou no desgosto que iria causar a quem me estima. Não vi imagens de momentos marcantes, não senti saudades. A cada pancada que o carro dava, eu somava mais uma despesa e tudo em que pensava era nos sonhos que já não iria poder concretizar, outra vez. Nos projetos de que teria que abdicar, outra vez. No banco de trás, a tremer controlada e quieta, a minha cadela Ester olhava para nós como que a perguntar: "Já chegamos?". Olhei para a cadela e perguntei-lhe se me ensinava a ser assim:

1º. Qualquer que seja a adversidade, a minha cadela aproveita o mais possível cada momento. Se não pode ir à rua 1 hora, vai 15 minutos. Se não pode ir à praia, dá a volta ao quarteirão. Se não lhe dão biscoito, devora a ração que lhe deixam. Se não tem um brinquedo novo, brinca com uma meia suja, mas brinca como se a meia fosse um boneco extraordinário, come a ração como se fosse um petisco único e fareja cada metro quadrado da areia, do jardim ou do tapete da padaria à porta da qual passa todos os dias como se estivesse a descobrir um mundo novo.

A Ester (e penso que qualquer cão) adapta-se com uma facilidade notável. Já viveu na rua, e num T2 na Foz. Já passou férias no Douro e no Alentejo. Já passou dias inteiros em casa e dias quase todos na rua e nunca se queixou, não se tornou desobediente nem mal-educada. Tanto abana a cauda, frenética quando vai à rua 15 minutos como quando regressa de uma caminhada de 3 ou 4 horas na montanha e regressa sempre a casa (seja maior ou mais pequena, na Foz ou na Afurada) como se estivesse a chegar ao lugar mais acolhedor e confortável do mundo!

Enquanto eu passei a noite acordada a refletir no que me ia custar o arranjo do carro, a Ester dormiu tranquilamente, no meio dos donos. Não se mexeu toda a noite. Enquanto eu passei todo o fim-de-semana na angústia do regresso, a Ester brincou horas na neve, correu, esfregou-se e farejou cada palmo do caminho, como se a cada passo tivesse descoberto um tesouro.

2º. Não se distrai do objetivo e tem uma paciência inesgotável. A Ester tem essencialmente três preocupações: comer, beber e ir à rua. Quando vai ao veterinário, a Ester não sabe se vai tomar banho, fazer um exame ou apanhar uma vacina. Não sabe se é grave ou de rotina nem se incomoda. A Ester só sabe que qualquer que seja o resultado, se colaborar com a veterinária, dão-lhe um biscoito, se sentar e der a pata às enfermeiras tem mais um biscoito e se for obediente, os donos dão-lhe mais um biscoito. Portanto, seja para a tosquia ou para uma operação, a Ester coopera e mostra-se dócil porque aquilo que não pode controlar, não a preocupa. O seu objetivo é comer biscoitos e mantem-se sempre focada no que tem que fazer para o conseguir. Á noite, quando quer água e não há, a Ester não ladra nem abre a torneira do bidé e molha tudo. Sobe para a cama dos donos e rosna baixinho. Por vezes é o que basta para o dono acordar. Quando não consegue acordar o dono, descobre a dona e tira-lhe as meias dos pés, com os dentes. Em 2 ou 3 minutos já está a saciada! Conhecedora da rotina do dia-a-dia, a Ester sabe que de manhã os donos a levam à rua antes de sair (para trabalhar) e ao fim do dia, quando regressam (do trabalho). E todos os dias acorda com a mesma preguiça e aguarda com a mesma paciência que lhe ponham a trela e a coleira e a levem lá fora. Seja dia, ou seja, noite, demore mais ou menos, a Ester não ladra, não estraga, não morde. Quer ir à rua e aguarda incansável, que a levem, sem reclamar.

3º. Não discrimina

Conforme já referi, a Ester tem fundamentalmente três preocupações na vida. Uma das quais é comer...biscoitos. Desta forma, trata qualquer ser humano com a mesma educação e interesse: conseguir um biscoito ou uma qualquer porção de comida. A Ester não olha a estratos sociais ou opções políticas. Não vê raças, crenças nem opiniões. Para a Ester tanto faz serem mais novos ou menos, pior ou melhor vestidos com mais ou menos saúde. A Ester não olha, fareja. E se tem biscoito, é a melhor pessoa do mundo, seja quem for. E os meus defeitos? A Ester conhece todos (ou quase) e ainda assim, estima-me, cuida, protege é leal e grata. Para a Ester não é indiferente se eu ganho mais ou menos, se sou combativa, obstinada ou conformada, se sou comunicativa ou introvertida. Tenho o compromisso de não deixar que lhe falte o essencial, cumpro-o, dedico-lhe tempo e atenção e isso basta-lhe. A Ester não complica.

4º É humilde e incondicionalmente disponível.

No trabalho, como na vida pessoal, dão instruções que não compreendo, dirigem-me palavras que me entristecem, tomam decisões que me angustiam. E, como é obvio, os meus comportamentos são suscetíveis de causar nos outros, as mesmas impressões. E, portanto, procuro ser tolerante, relativizar, relevar. Aceitar. Mas muitas vezes não esqueço. Posso acatar uma ordem que não compreendo, retribuir com compaixão a uma ofensa, ouvir com benevolência um desaforo. Mas o grito que me atiraram, o ato que me ofendeu, a ordem que não me foi explicada, o percalço com que me deparei, tudo isto mói. Marca. Fica guardado. E, por vezes, por mais que tente relevar e ser grata por tudo o que tenho e retirar algo positivo de tudo o que vivo, chego a casa desgastada e sem disponibilidade. Levo a cadela à rua como que a cumprir penitência. Dou-lhe ração e viro-lhe costas. E ainda ralho se me pede atenção. Os cães têm essa incrível falta de capacidade de armazenamento. Sentem, no momento e esquecem. Não guardam. Não acumulam e estão sempre disponíveis. A Ester odeia tomar banho e não compreende por qual motivo eu a faço passar por tamanho tormento. Mas não discute. Vai para a banheira, obediente, espera imóvel que eu feche a torneira e a embrulhe com a toalha, corre a casa todo durante cinco minutos, fica amuada mais cinco e está pronta para outra. Não fica a remoer nas minhas razões para lhe dar banho. Ou para a levar ao veterinário. Ou para às vezes negar um biscoito. Tenho uma amiga que me diz muitas vezes: "Ana, tu não sabes o tamanho da cruz que os outros carregam". Ás vezes apetece-me responder-lhe: "Com a cruz dos outros posso bem". A Ester não tem cruz. É incrivelmente livre de culpas e arrependimentos. Isenta de qualquer rancor. E está sempre disponível. E a pensar nestas lições, desliguei, por minutos, a máquina de calcular. Amanhã é outro dia e vou procurar enfrentá-lo com a mesma atitude da Ester quando vai ao veterinário. A todos, uma boa noite!

Ana

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